Jussara Lucena, escritora

Textos

Sal grosso

É incontável o número de passagens que conduzi, da mesma forma, é impossível lembrar cada uma delas. Cada região, cada povo, cria suas próprias crendices, desenvolve suas fantasias na tentativa de tornar suportável este momento, doloroso para eles, simples e tranquilo para mim.

A incerteza quanto ao que vem depois dá margem para todo tipo de pensamentos, crendices e superstições. As faltas cometidas em vida parecem pesar muito e buscam-se formas de compensação, de alivio da carga e da pena supostamente imposta aos pecadores.

Neste momento surgem algumas figuras interessantes como os devoradores de pecados, que são pagos para assumir as dívidas de outros e as rezadeiras que, normalmente, junto com familiares, amigos e curiosos velam o moribundo ou o defunto.

A vela, por sinal, é um instrumento interessante, além de facilitar a vigia quando não havia energia elétrica, tornou-se um símbolo de purificação da alma e de iluminamento do caminho. Há outras crenças sobre a vela também. Falando nisso, uma situação me marcou um pouco mais.

Um velho senhor passava os últimos instantes de sua vida, quase centenária, preso a uma cama. Insistia em viver, apesar das agruras que a vida lhe proporcionara. A família se distanciara, os amigos já haviam partido mais cedo. Rosto pálido, cabelos ralos e grisalhos, se cobria com uma manta leve. Só o rosto ficava de fora. Na casa de madeira, sem pintura nem forro, a sombra das telhas tornava escuro o quarto que cheirava a mofo e corpo doente.

O ambiente era muito simples. Acima da cabeceira da cama um quadro circular representava o Espírito Santo em forma de uma pomba branca, sobreposta a um triângulo de onde emanava a Luz Divina. Na parede em frente à cama, à esquerda numa moldura ovalada um retrato pintado à mão. Nele um homem de cabelo escuro, levemente ondulado, olhos castanhos, orelhas grandes e nariz volumoso, vestia paletó com gravata borboleta. Estava ao lado da noiva de cabelos ruivos e cacheados, de olhos verdes e puros. Sim, eu me lembro dela. Partiu quando nasceu o seu quarto filho. Fez muito esforço para que o rebento sobrevivesse, depois seguiu em paz. À direita da mesma parede, um pequeno armário de duas portas. Ao lado da cama um criado mudo e sobre ele um copo d’água, uma pequena toalha e, sobre um pires de louça, uma única vela que pouco iluminava o ambiente.

Sentadas, ao lado da cama, em cadeiras de madeira e palha trançada, duas senhoras, contratadas pela ocupada família, oravam para que o velho senhor encontrasse o bom caminho. Vestidas com roupas em tom escuro, cabelos presos e postura sóbria, perdiam-se nas horas de vigília e passagens pelo Rosário. Após o Quinto Mistério do Terço que rezavam, a mais velha observava o ambiente e repentinamente interrompeu o Salve Rainha que conduzia quando percebeu que a vela estava acabando. Assustada disse para a outra:

- Comadre, a vela está quase no fim. Sabe como é, dizem que quando a vela acaba a vida do moribundo também se vai. Corre lá na despensa e traga outra vela.

Obediente foi. Após dez minutos e muito procurar voltou de mãos vazias e desesperada falou:

- Comadre, procurei por tudo, também na cozinha e não encontrei nenhum toquinho de vela. Só tem um jeito, vou até o armazém e compro um maço.

- Não dá comadre, o armazém é longe e até a sua volta tudo já se acabou!

O silêncio tomou conta do lugar por alguns instantes. Uma breve brisa invadiu o ambiente e quase apagou a tênue chama, que tremulou e insistiu em manter-se acesa. Atrasou a minha tarefa.

A mais velha, com ar de alívio disse:

- Comadre, lembrei-me de algo que pode nos ajudar. Viu se tem sal grosso lá na cozinha?

- Tem sim.

- Corre até lá e traz o saleiro!

Sem entender muito bem, a outra se apressou em atender ao pedido. Ofegante retornou e entregou a vasilha com o sal.

Os dedos enrijecidos da rezadeira mais velha pegaram uma pitada do sal e cuidadosamente o espalharam em volta do pavio.

- Pronto. Agora o sal vai fazer a vela durar mais um pouco. Assim dará tempo para você ir e voltar do armazém.

A outra sorrindo apanhou a sombrinha e partiu a passos largos para sua missão.

O senhorzinho arrancou um pouco do restinho de energia do seu velho e desgastado corpo, ergueu sofridamente o pescoço, olhou para a vela e depois para a senhora que ainda estava no quarto e sussurrou:

- Sal grosso economiza vela? Vivendo e aprendendo!

Sentei-me aos pés da cama e pacientemente esperei até que, depois da queima de alguns maços de vela, partimos. Ele acomodado tranquilamente em meus braços.

Texto vencedor do 9º Concurso de Contos Livro de Graça na Praça promovido pela Academia Mineira de Letras, publicado na Antologia Ditados, provérbios e ditos populares, setembro de 2015.

Adnelson Campos
15/09/2015

 

 

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